(E porque eu não paro de falar disso)
Existem livros que mudam nossas vidas como eventos cataclísmicos. São raros. A maioria nos emociona por um instante e em breve nos esquecemos deles. Ou então, suas lições viram um mero eco em meio à bomba de informações a que somos expostos todos os dias. Em nossa ânsia por consumir, não digerimos direito. Isso, é claro, quando ainda não desistimos e nos conformamos em ficar em frente à TV ou rolando a tela do celular como zumbis digitais.
Esse é o zeitgeist e não há como fugir dele. No entanto, conformados com a velocidade do mundo, às vezes nos deparamos com essas obras transformadoras.
Quando me indicaram a leitura de Rápido e Devagar, eu revirei os olhos. Não queria ler aquele bloco de mais de 600 páginas falando sobre psicologia, economia e estatística. Não me parecia um tema tão empolgante quanto ler o último livro de Guerra dos Tronos, por exemplo. No lugar de cabeças rolando, eu passaria horas lendo sobre a importância de considerar as taxas bases antes de realizar uma predição. Boring.
Mas temos uma máxima em nossa empresa que diz que “fazemos o que precisa ser feito”. Isso significa que fazemos coisas que muitas vezes não gostamos e isso envolve ler livros de mais de 600 páginas cujo conteúdo, ouvi dizer, era terrivelmente técnico.
Entre o dia que comecei e até hoje, fui me transformando lentamente em uma defensora voraz das ideias de Daniel Kahneman. Muito mais do que se ater à descrição restrita de técnicas estatísticas para tomadas de decisão, Kahneman começa seus livros nos mostrando as pegadinhas de confiar em nossa própria mente e, mais do que isso, como isso é ineficiente e, muitas vezes, perigoso. Os condicionamentos mentais podem interferir na decisão de um juiz diante de uma condenação tanto quanto os próprios fatos em si.
Somente depois de nos sentirmos impotentes diante de uma completa exemplificação de como a mente humana opera diante de tomadas de decisão é que Kahneman irá começar a descrever as técnicas metodológicas, bem como o modelo mental cujo o intento é diminuir nossa suscetibilidade à nossa própria mente. Curioso, não é? Podemos ser enganados por nós mesmos. Aliás, constantemente somos.
Podemos resumir essa primeira explicação de uma forma bem simples, como o próprio autor sugere. É como se a mente estivesse dividida entre dois sistemas: o sistema 1, ligado às emoções, reativo e rápido; e o sistema 2, mais inteligente e racional, porém bem mais lento e, na verdade, “preguiçoso”.
Ambos os sistemas foram fundamentais para nossa evolução e sobrevivência como espécie, no entanto, o engano acontece quando reagimos com o sistema 1 quando deveríamos reagir com o sistema 2, ou vice-versa. E como fugir de uma armadilha que existe dentro de nós?
Para mim, a grandeza de Kahneman está em não resumir seu livro a demonstrar técnicas matemáticas e estatísticas para realizar previsões, mas em propor uma nova forma de pensar que confronta nossa arrogância de querermos saber de tudo. Sempre que podemos substituir o julgamento humano por uma fórmula, devemos ao menos levá-la em consideração.
Admito que essa frase pode causar certo estranhamento, mas vamos a um exemplo: Daniel Kahneman discute um estudo realizado pelo psicólogo Paul Meehl na década de 1950 que examina a eficácia de fórmulas estatísticas simples em comparação ao julgamento humano.
O estudo de Meehl concentrou-se na previsão do desempenho acadêmico de estudantes universitários. As admissões nas universidades geralmente envolvem entrevistas pessoais, nas quais os entrevistadores avaliam os candidatos com base nas suas impressões subjetivas. Essas impressões são influenciadas por diversos fatores, como a aparência, a confiança e a forma como os candidatos respondem às perguntas. A questão era se essas entrevistas subjetivas eram realmente eficazes na previsão do sucesso acadêmico dos estudantes.
Meehl propôs uma abordagem diferente: usar uma fórmula estatística para prever o desempenho acadêmico. Essa fórmula incluía apenas alguns fatores objetivos e quantificáveis, como:
- Notas dos testes padronizados (como SAT ou ACT).
- Classificações das escolas de ensino médio.
- Desempenho acadêmico anterior.
Para testar a eficácia dessa abordagem, Meehl comparou as previsões feitas pelos entrevistadores humanos com aquelas feitas pela fórmula estatística. Os resultados mostraram consistentemente que a fórmula era mais precisa do que o julgamento dos entrevistadores. A fórmula simples, que ignorava totalmente as impressões subjetivas dos entrevistadores, conseguiu prever o sucesso acadêmico com maior acurácia.
Kahneman explica que isso ocorre porque os humanos são suscetíveis a uma série de vieses cognitivos e emocionais que podem distorcer seus julgamentos. Por exemplo, um entrevistador pode ser influenciado por um viés de confirmação, procurando evidências que confirmem suas impressões iniciais de um candidato. Além disso, fatores irrelevantes, como a aparência ou a simpatia, podem influenciar a avaliação.
Por outro lado, a fórmula aplica regras de forma consistente e imparcial, focando apenas nos dados relevantes e objetivos. Ela não é influenciada por fatores emocionais ou subjetivos, o que a torna uma ferramenta mais confiável em muitas situações. Duro, porém real.
Outro ponto importante, que mudou para sempre minha percepção sobre fatos e ocorrências e é amplamente discutido no livro, é o fato de que “amostras pequenas fornecem resultados extremos com mais frequência do que amostras grandes o fazem”. Parece óbvio, mas, vejamos:
Kahneman menciona um estudo que analisou a taxa de câncer de rim nos 3.141 condados dos Estados Unidos. Os pesquisadores queriam identificar padrões e entender quais fatores poderiam estar associados a taxas particularmente altas ou baixas de câncer de rim.
Os resultados do estudo revelaram que os condados com as menores taxas de câncer de rim eram tipicamente rurais, escassamente povoados e localizados em estados tradicionalmente “verdes”, como o Centro-Oeste e o Oeste dos EUA. A interpretação inicial sugeriu que esses fatores ambientais e estilos de vida mais saudáveis, comuns em áreas rurais, poderiam estar contribuindo para as baixas taxas de câncer.
No entanto, uma análise mais aprofundada revelou algo intrigante: os condados com as maiores taxas de câncer de rim também eram tipicamente rurais, escassamente povoados e localizados nos mesmos tipos de estados.
Essa aparente contradição pode ser explicada pelo tamanho das amostras. Condados com pequenas populações (amostras pequenas) são mais suscetíveis a variações extremas nos dados. Em amostras pequenas, a ocorrência de poucos casos de câncer pode fazer a taxa parecer extremamente baixa, enquanto a ocorrência de alguns casos adicionais pode fazer a taxa parecer extremamente alta.
Kahneman usa esse exemplo para ilustrar a importância de considerar o tamanho da amostra ao interpretar resultados estatísticos. Ele enfatiza que resultados extremos em amostras pequenas podem ser enganadores e que é crucial estar ciente desse efeito ao fazer inferências baseadas em dados.
Este exemplo sublinha a necessidade de cautela ao interpretar dados de amostras pequenas e reforça a importância de usar amostras maiores para obter resultados mais confiáveis e representativos.
Agora, pense em quantas vezes nos baseamos em amostras pequenas para tomar decisões de negócios? Algum concorrente apresentou uma margem excepcional? Então podemos conseguir também! Um grande esforço foi recompensado de maneira espetacular? Então, obviamente, vamos conseguir também!
Não é tão simples assim, para o bem ou para o mal, todos estamos mais próximos da taxa-base do que parece. Por isso, uma fórmula acaba acertando mais que nossa própria intuição, pois ela não leva em conta essa confiança que temos em nossa própria capacidade, o que nos leva a crer, quase sempre, que seremos melhores que a média.
Mas calma. Isso não é pessimista e não se sinta medíocre por isso. O próprio livro enfatiza a diferença que faz um pensamento positivo no sucesso de qualquer ação. Ele o energiza. Apenas precisa ser calibrado com uma racionalidade que leve em conta dados certos.
“Rápido e Devagar” não é apenas um tratado técnico sobre psicologia e estatística, mas uma obra que nos desafia a reavaliar nossa confiança na intuição e a adotar uma abordagem mais analítica e fundamentada em dados para as decisões diárias. É uma leitura indispensável para quem deseja melhorar suas habilidades de tomada de decisão e evitar as armadilhas da mente humana.
Ao integrar essas lições em nossa prática cotidiana, podemos nos tornar mais conscientes de nossas limitações e, ao mesmo tempo, mais capacitados para tomar decisões melhores e mais informadas. Essa é a verdadeira grandeza da obra de Kahneman: nos fornecer uma nova lente para ver o mundo e, com ela, uma maneira mais eficaz de navegar por ele.